Cena 1 - O avião dos Deuses

 

Conviver durante vários anos com os problemas advindos de uma insatisfação com a escola, ou seja, com o que ela ensina, com o que dela se espera, os indivíduos que forma e os que deveria formar face às exigências sociais e culturais, os objetivos que não conseguem ser atingidos, ou até mesmo formulados, a precariedade dos recursos humanos e materiais, enfim, a consciência da distância existente entre o homem que a escola forma e o homem como deve ser do mundo, conduziu a uma reflexão em torno de novos objetivos, novos métodos, enfim, de uma nova pedagogia, cuja tônica primeira é a supressão do monólogo e a instauração de uma prática dialógica: ou seja de uma interdisciplinaridade no ensino. (FAZENDA, 2002, p. 97) 

 

O barulho, desconhecido aos seus ouvidos, surgiu de repente, como um zunido, bem baixinho. Desconfiado, ele começou a olhar para os lados, em busca da origem daquele som que ele não sabia ao certo de onde vinha e o que podia significar. O passar dos minutos aumentou a intensidade e a vibração daquele som, que já o estava aquietando há algum tempo e que agora começava a lhe preocupar ainda mais diante da possibilidade de um perigo eminente. Perante dessa incerteza, ele parou de olhar no chão, e resolveu procurar nos galhos das árvores que estavam mais próximas.

O silêncio que reinara até pouco tempo atrás já estava totalmente tomado pela estranheza daquele barulho. E então, de súbito, ao erguer o seu olhar, o jovem africano percebeu a proximidade de uma ave diferente de todas aquelas que conhecera anteriormente. Ele já havia visto algumas semelhantes àquela em outras ocasiões. Não tinha ainda uma clara convicção de seu formato ou dos sons que emitia. Considerava que aquela ave poderia até ser sagrada, tendo em vista o seu tamanho, brilho e velocidade. Enquanto pensava tudo isso, a ave chegava mais e mais perto. Dessa vez, diferentemente de todas as outras ocasiões em que avistara tal espécie, o vôo parecia bem mais baixo. Isso lhe daria a oportunidade de perceber detalhes que ainda não pudera verificar em outros encontros. Gostaria de estar na companhia de outras pessoas de sua tribo, mas tinha saído para caçar e não levara ninguém com ele. Quando finalmente se deu conta, a ave estava passando a apenas alguns metros de altura e, da mesma, despencou um objeto que lhe atingiu em cheio na cabeça… Desnorteado pelo golpe, ele ainda viu o avião, que imaginava ser uma ave, indo embora e deixando em suas mãos um artefato que acreditava valioso. Era apenas uma garrafa de Coca-Cola, mas para ele, um aborígine africano, parecia um tesouro e deveria ser devolvido aos donos…

Também fui golpeado por uma garrafa de Coca-Cola lançada do alto. E para mim, como para o personagem principal do filme Os Deuses devem estar loucos, não se tratava apenas de mera coincidência. Desde o primeiro momento em que ingressei numa sala de aula enquanto aspirante ao trabalho em educação fui desnorteado pela tal garrafa lançada pelos deuses. O golpe em questão não foi dado de forma cinematográfica e cômica como a que pudemos recordar a partir do relato em que é reproduzida a sequência inicial de um dos filmes africanos de maior repercussão mundial em todos os tempos.

A semente já estava dentro de mim, plantada desde os tempos em que era estudante e percebia a escola como um lugar que tinha tudo para ser interessante, instigante, provocativo e que, na realidade, mostrava-se decepcionante, enfadonho e desestimulante. O olhar de estudante de um curso de licenciatura em História apenas amadurecera essa crítica e modificara a atitude, que deixara de ser contemplativa e buscava respostas que pudessem tornar a escola muito mais vibrante. Isso se traduziu numa prática de trabalho que, aos poucos, tentou introduzir de forma constante, através de diversas iniciativas (com sucessos e alguns fracassos, acertos e erros), novos recursos, metodologias, formas de ação e interação ao trabalho que era executado em sala de aula. Independentemente da turma de alunos com as quais trabalhava, a dor provocada pela Coca-Cola que me golpeara desde os primeiros momentos em que iniciara a minha jornada em educação, sempre me lembrava da necessidade de repensar a prática de ensino-aprendizagem que me colocava todos os dias perante os estudantes.

Foram realizadas diversas experiências que envolveram alunos de 12 a 80 anos (em cursos de Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação de Jovens e Adultos, Ensino de Língua Estrangeira, 3° Grau e Faculdade da Terceira Idade). Como o personagem de Os Deuses devem estar loucos, uma peregrinação havia se iniciado em minha vida e, enquanto não encontrasse respostas, soluções, explicações e possibilidades de diálogo em que pudesse expressar angústias, dores, sofrimentos e também os sucessos, bons momentos, possibilidades e resultados promissores atingidos ao longo de pouco mais de uma década e meia de trabalho e prospecção em educação, não sentiria a necessária paz de espírito. Precisava passar adiante a garrafa de Coca-Cola para que outras pessoas pudessem partilhar da minha dor de cabeça… 

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