Um grupo de pessoas navegando em seus computadores.

“Meus filhos viviam na Austrália desde que nasceram. Mas no que diz respeito a aspectos importantes eles tinham sido criados em outro lugar, na cidade-estado supranacional profetizada por Marshall McLuhan na década de 1960 e concretizada por Bill Gates e Steve Jobs na década de 1990. Digitopia. Cyburbia. A Aldeia Global. Chame do que quiser, é onde eles vivem agora. Meus filhos são cidadãos australianos e americanos. Mas em primeiro lugar e mais importante, eles são nativos digitais – assim como os seus.” (Susan Maushart, no livro ’O inverno da nossa desconexão’)

– Onde você mora?

– No universo digital. Numa cidade virtual cujo nome é Jobs, em homenagem ao criador da Apple. E você?

– Estou vivendo em Gates, mas gostaria de me mudar para Digitopia, a capital. Você não tem vontade de morar lá?

– Claro! Todos querem estar no centro do mundo digital e a capital é o local para o qual todos se direcionam quando pensam nisso. Jobs é mais um local de trabalho e estudo. Gates, onde você está concentra também ações profissionais. Digitopia é onde tudo se encontra: as redes sociais, o entretenimento, os games, a adrenalina toda.

– Já ouviu falar que há vida lá fora?

– Sim, já…

– Que as pessoas podem de fato se encontrar, se relacionar, ver coisas físicas, palpáveis, ver o mar, florestas e coisas assim…

– Meus pais falam sobre isso o tempo todo. Acho eles uns chatos. Pedem que desligue o computador ou que deixe de lado meu smartphone e me aventure nesta outra dimensão.

– Já tentei fazer isso, mas achei tedioso, senti falta das telas pulando na minha frente, permitindo conexões que me ativam o tempo todo, pedindo atenção, respostas, colaboração, compartilhamento, amizades…

– Pois é cara, aqui em casa ainda temos livros, muitos deles, numa grande estante no escritório de meu pai. Eles têm até LPs que usam para ouvir música.

– Por aqui isso já foi para o lixo há muito tempo, mas minha mãe insiste na ideia de que temos que nos sentar juntos em pelo menos uma refeição por dia. Minha irmã gosta, na realidade ela não foi iniciada da forma correta no mundo virtual, por isso vive mais lá fora do que aqui dentro.

– E porque você vive Gates? Por conta de seu trabalho?

– Sim. A empresa em que trabalho usa o sistema criado por este visionário. Estamos todos ligados a planilhas, textos e apresentações que rodam nas nuvens dentro de servidores geridos por esta empresa. É estável, raramente dá problemas e quando acontecem são momentâneos. Já chegamos a ficar por 10 minutos fora da rede, muitos choraram pois não sabiam ao certo como proceder ou o que fazer sem acesso a web.

– Em Jobs a margem de erro é residual, nunca passamos mais que 3 minutos offline e quando isso aconteceu tivemos um reset do relógio digital que rege nosso universo para que esta falha fosse apagada do sistema e ninguém se lembrasse. Eu anotei num papel e por isso consigo recordar esta passagem, mas se pegarem esta anotação que fiz posso até mesmo ser banido de Jobs. Por sinal, falar sobre isso na rede aberta poderia me expor, por isso entro nestes canais subterrâneos. Ter papel por aqui é permitido somente as altas patentes, nem sei como consegui algumas poucas unidades.

– Vivo digitalmente porque lá fora, apesar das promessas e lendas que circulam, me sentiria fora d’água virtual, no entanto, já ouvi falar de alguns blocos de pessoas resistentes que insistem num modelo blended, ou seja, no qual tenhamos vida virtual e fora deste universo também.

– Há aqueles que querem até mesmo o banimento das telas e o fim do mundo digital, você consegue imaginar isso? Dizem que nossos antepassados viveram séculos sem estes recursos e mídias.

– E em Digitopia, apesar de não morar lá, você vai com frequência?

– Sim. Todos os dias, as vezes até mesmo durante o trabalho. Isso é permitido por aqui, por exemplo, na hora do café virtual ou nos horários de almoço, quando recebemos nossa comida em nossa mesa de trabalho. Quando volto para casa entro direto em Digitopia e vou para Cyburbia, onde os jogos online são mais violentos e liberados, sem tanto controle.

– É, também gosto das simulações de guerra e daquelas que nos levam a Idade Média ou ao Coliseu. Me sinto como se fosse um soldado romano ou um gladiador nas arenas. Tenho até algumas medalhas por batalhas vencidas. Além disso curto os cassinos virtuais, onde já ganhei muito dinheiro digital. E olhe que nem preciso trapacear, jogo bem mesmo.

– Eu não curto muito baralho. Vou a festas digitais e tenho algumas namoradas espalhadas pela web, tanto em Cyburbia quanto em CenterDigital.

A tela se apaga de repente… Retorna com mensagem do controle das centrais de Gates e Jobs indicando que o intervalo digital acabou. O trabalho retorna a tela. Os amigos virtuais, que nunca se viram pessoalmente, voltam a trabalhar e a aguardar uma nova oportunidade de conversar ou de ir a Digitopia. Lá fora um belo dia de sol, as ruas vazias denunciam o mundo em que vivemos. As pessoas circulam por lá ocasionalmente, sempre entre um e outro local onde possam acessar a web. Fazem compras pela rede mundial de computadores, não frequentam mais shoppings ou supermercados. Se encontram somente em salas ou grupos nas redes sociais. Trabalham conectados. Namoram pela internet. A população mundial começou a decrescer fortemente. A obesidade aumentou a níveis alarmantes. As doenças relacionadas ao vício digital superaram o alcoolismo e os problemas cardíacos. Em Digitopia, Jobs e Gates, no entanto, a vida segue, perfeita, linda, sem problemas…

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