Uma jovem

“E tudo é uma parcela do diverso
Cristal dessa memória, o universo.”
Jorge Luis Borges

 

O ato de educar pode adquirir diversos significados: formar, sociabilizar, ensinar, clarear, modelar, conscientizar, integrar. São tantas as implicações dessa ação, ao mesmo tempo simples e complexa, que constantemente nos perguntamos pelo seu sentido como se não fosse mais possível reconhecer o traçado no entrecruzamento das linhas como de um bordado. Do universo caótico do avesso vai, aos poucos, se configurando as formas no lado direito. A linha que fura o tecido busca o caminho como quem procura um objetivo que só pode se revelar gradualmente num processo criativo. Exatamente por isso que educar é também criar. Ação que exige cuidado, intencionalidade, mas que, sobretudo, transcende a si mesma desvelando a riqueza múltipla do humano.

Mas o que é o humano? O filósofo francês Voltaire, em seu Tratado de Metafísica tenta responder a essa dúvida supondo ser um habitante de Marte ou Júpiter que descendo na terra busca pelo homem:

“Descendo a esse montículo de lama e não tendo maiores noções sobre o homem desembarco no oceano, no país da Cafraria, e começo a procurar um homem. Vejo macacos, elefantes e negros. Todos parecem ter o lampejo de uma razão imperfeita. Uns e outros possuem uma linguagem que não compreendo e todas as suas ações parecem se relacionar com um certo fim. Se julgasse as coisas pelo primeiro efeito que me causam, inclinar-me- ia a crer, inicialmente, que de todos esses seres o elefante é o animal racional. Contudo, para não decidir levianamente tomo os filhotes dessas várias bestas. Examino um filhote de negro de seis meses, um elefantinho, um macaquinho, um leãozinho, um cachorrinho. Vejo, sem poder duvidar, que esses jovens animais possuem mais força, mais destreza, mais idéias, mais paixões, mais memória que o negrinho e que exprimem muito mais sensivelmente todos os seus desejos que ele. Entretanto, ao cabo de um certo tempo, o negrinho possui tantas idéias quanto todos eles. Chego mesmo a perceber que os animais negros possuem entre si uma linguagem mais bem articulada e variada que os outros animais. Tive tempo de aprender tal linguagem e, enfim, de tanto observar o pequeno grau de superioridade que a longo prazo apresentam em relação aos macacos e aos elefantes, arrisco-me a julgar que efetivamente ali está o homem. E forneço a mim mesmo esta definição: o homem é um animal preto que possui lã sobre a cabeça, caminha sobre duas patas, é quase tão destro quanto um símio, é menos forte que os outros animais de seu tamanho, provido de um pouco mais de idéias do que eles e dotado de maior facilidade de expressão (…) Após ter passado certo tempo entre essa espécie, desloco-me rumo às regiões marítimas das Índias Orientais. Surpreendo-me com que vejo: os elefantes, os leões, os macacos e os papagaios não são exatamente como na Cafraria; mas o homem, esse parece-me absolutamente diferente. Agora são homens de um belo tom amarelo, não possuem lã, mas têm a cabeça coberta por grandes crinas negras. Parecem ter sobre as coisas idéias contrárias às dos negros. Sou, portanto, obrigado a mudar minha definição (…) ”

Em busca de uma definição do homem, o filósofo nos presenteia com a impossibilidade da definição, de um modelo único do humano. Nossa diversidade é fruto de nossa imersão no universo de representações que criamos socialmente – o da cultura e da linguagem.

Nas interações com os outros que aprendemos o significado dos saberes constituídos: da energia atômica ao som do atrito de cordas de um violino, da faca que corta as tintas que pintam o corpo, das palavras que falam às que calam os sentimentos.

Machado de Assis, cronista perspicaz, trata com requinte o tema nos apresentando “O espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana”, pequeno conto que busca investigar as agruras da essência humana.

No conto, Jacobina, personagem de poucas palavras, é convidado a participar de uma acirrada discussão metafísica sobre a existência da alma. Avesso por princípio aos debates, afirma não apenas a existência da alma humana, mas de duas: uma que olha de dentro para fora; outra que olha de fora para dentro.

A alma exterior poderia ser um espírito, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação ou mesmo um simples botão de camisa e tem por ofício transmitir a vida, assim como a interior. Muda de natureza e estado de tal forma que a alma de alguém pode ser, nos primeiros anos, um chocalho ou um cavalinho de pau e, mais tarde, um título em uma associação.
Esta descoberta se deu quando Jacobina com vinte e cinco anos, de família pobre, fora nomeado alferes da guarda nacional. A nomeação causara o orgulho da família e vizinhos e havia conduzido uma tia, que morava em um sítio, a levar o sobrinho e a farda com ela. Jacobina passou a ser chamado de Sr. Alferes pela tia, amigos e escravos. O entusiasmo da tia a leva ao ponto de mandar instalar um grande espelho no quarto do jovem, obra rica e magnífica que destoava do resto da casa.

Os caprichos no tratamento faziam a consciência do homem esmorecer e a do alferes se tornar mais viva. Certo dia, a tia é obrigada a deixá-lo para acudir uma filha doente. Abandonado na solidão graças à fuga dos escravos do sítio, o personagem diante do “cochicho do nada” se entrega ao sono: sonhava estar no meio da família e dos amigos exibindo sua farda. Amigos ofereciam o posto de tenente, capitão, major… Em depressão, sem fome, depois de oito dias, nosso amigo se olha no espelho e não é capaz de ver uma figura inteira, mas uma sombra vaga e esfumaçada. Com medo da loucura, Jacobina tem uma inspiração inexplicável: lembra-se de sua farda. Veste-se, arruma-se e reaparece diante do espelho a figura integral, o ente autômato torna-se novamente animado. O ritual da farda diante do espelho o ajuda a suportar mais seis dias de solidão sem senti-los.

Machado de Assis nos coloca diante do espelho do humano, da representação da imagem que só pode se configurar com os outros; no convívio social estabelecemos valores, buscamos o sentido para a vida e para a existência. Esse é o mistério do humano: ser na interação com seres, no diverso buscar nossa identidade. Esse é o milagre da educação: fazer-se continuamente, mudando de natureza e de estado, mas conscientes da imagem que queremos ver projetada no espelho, daquilo que valorizamos.

Sendo assim, não podemos negar que toda ação educacional envolve valores que se projetam; aquilo que esperamos que cada criança, cada jovem seja capaz de reconhecer no espelho de sua existência. Todavia, é preciso cuidado. Não se trata de emprestar nossos olhos e fazer valer nossas expectativas por mais amplas, belas, generosas ou revolucionárias que sejam. Embora um projeto educacional exija dos envolvidos a clareza do que se quer e só ganhe sentido na própria ação, a ação educativa transcende o que a motivou, ou seja, neste caso, o processo é mais importante que o produto, pois no processo é possível aprender a lançar-se na investigação, na descoberta e na criação.

Isso significa dizer que não nos envolvemos em projetos educacionais porque queremos um mundo de músicos, biólogos, bailarinos, jogadores de futebol ou até mesmo alferes da guarda nacional. Sem dúvida, um mundo sem músicos ou jogadores de futebol não seria nada interessante. Mas se as artes, as ciências, os esportes são importantes, o são na própria construção do fazer-se humano, do processo mais do que produto. Exatamente por esse processo ser contínuo – não se encerrar na apresentação musical, no campeonato, na feira cultural ou de ciências – é que uma educação para os valores, que possibilite o exercício do pensar as ações, avaliar suas dimensões, limites e conseqüências é fundamental para a construção da identidade capaz de projetar-se no espelho do mundo. Mas o que seria uma educação para os valores? Não estaríamos correndo o risco de limitar as identidades às molduras de nossos espelhos?

Entre moldes e molduras…

Educar é quase sempre perguntar qual ser humano queremos formar. Formar é colocar na forma, moldar. Mas também pode ser dar forma. Mas, se analisarmos a própria dimensão humana perceberemos que há formas de dar forma que vão além das formas (dos moldes).

Foi assim que no contato com a natureza e com a cultura conseguimos dar formas diversas e múltiplas ao mundo. E não apenas dar e criar formas, mas atribuir-lhes sentido. Transmitir formas e sentidos (informar), transfigurá-las (transformar).

A transformação só é possível, pois no humano reside à possibilidade de avaliar as ações, pensar o próprio processo do pensar: investigar, prever, problematizar, julgar, etc.

Assim aprendemos o que é bom ou não, bonito ou feio, justo ou injusto. Aprendemos e continuamos aprendendo, pois neste processo contínuo não é possível acomodar as molduras que temos à complexidade da vida que se transforma a cada instante. Dito de outra forma, o que alguns vêem como crise de valores pode indicar apenas a necessidade de pensarmos na inadequação ou adequação das molduras para os fins que almejamos. Isso nos remete, invariavelmente, à reflexão sobre uma educação para valores.

Pergunta-se: Como educar para valores se um vaso sanitário em um canto de um museu pode ser entendido como arte, como expressão do que era sublime e belo? Como educar para valores se a desonestidade é entendida como ordem natural da sobrevivência? Se a desigualdade guia a ação da justiça?

A perplexidade e a indignação que envolve essas questões podem conduzir à tendência de se resgatar princípios universais que imaginamos estarem esquecidos ou adormecidos na educação dos jovens e crianças, tais como solidariedade, honestidade…

Todavia, nenhum princípio moral por mais bem intencionado, fundamentado e sedimentado poderia transformar por si mesmo as ações, pelo simples fato de que tais valores não são entidades, mas criações que surgem da necessidade humana de viver e conviver, da necessidade do homem de pensar-se a si mesmo. Não é a toa que os Parâmetros Curriculares Nacionais emprestam da filosofia os elementos que permitiriam delinear um conceito de cidadania.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais a cidadania deve ser entendida em três dimensões: ética, estética e política. Estética no sentido do exercício de sensibilidade; ética no sentido de construção de identidade autônoma e; política, visando à participação democrática através do acesso aos bens culturais e naturais. Desenvolver a sensibilidade, a identidade autônoma e a participação democrática é o desafio da educação que coincide com o desafio de devolver ao homem sua própria imagem: de ser que cria, avalia e transforma.

A possibilidade de mediação entre o vivido e o pensado tem na arte um lugar privilegiado. A síntese criativa, a comunhão entre o sujeito e natureza tem no sentimento a via de acesso da experiência estética. O sentimento provocado pela experiência estética alarga as fronteiras do vivido, de um mundo que se descortina em profundidade na medida em que é possível extrair o objeto do seu contexto e o relacionar a um horizonte único. Por isso afirma Sartre:

A obra jamais se limita ao objeto pintado, esculpido ou narrado; assim como só percebemos as coisas sobre o fundo do mundo, também os objetos representados pela arte aparecem sobre o fundo do universo. Se o pintor nos apresenta um campo ou vaso de flores, seus quadros são janelas abertas para o mundo inteiro (…) O objeto estético é propriamente o mundo, na medida em que é visado através dos imaginários, a alegria estética acompanha a consciência de que o mundo é um valor, isto é, uma tarefa proposta à liberdade humana.”

Ora, se a arte alarga o sentido e o sentimento do mundo é porque a liberdade se impõe como marca do que somos e fazemos. No exercício dessa liberdade é que avaliamos o que nos serve ou não para a convivência, formulamos regras, estabelecemos modelos de conduta que nos permitem a vida em sociedade. A esse conjunto de valores, normas, regras denominamos moral. A moral prescreve o que devemos ou não devemos fazer diante dos diferentes grupos sociais a que pertencemos. Sendo assim, é comum guiarmos nossas ações pelo reconhecimento social do grupo em que estamos inseridos. Nessas relações aprendemos o que é bom ou mal, certo ou errado, justo ou injusto. Por isso, afirmava Aristóteles que somente o exercício de bons hábitos entre os jovens poderia moldar o caráter voltado para as virtudes, ou seja, a educação moral seria fundamental para a formação do caráter e da identidade.

Mas é preciso considerar que a identidade também se forma na diversidade. Família, escola, meios de comunicação de massa expõem crianças e jovens a modelos de conduta diversos e, por vezes, contraditórios. Se a vida constantemente nos apresenta escolhas é preciso saber distinguir qual a melhor forma de agir, essa é a tarefa da ética enquanto reflexão da moral.

Se a moral é o exercício do dever, a ética é o exercício do querer consciente de suas implicações e conseqüências. Não se trata de doutrinar, mas de buscar formas de favorecer a autonomia moral. Em outras palavras, mais do que ensinar o certo ou errado seria preciso criar condições para que crianças e jovens possam pensar por si mesmas as condições e conseqüências de suas escolhas.

Favorecer o diálogo é um importante instrumento para passarmos da conduta heterônoma para a autônoma. Na conduta heterônoma agimos guiados pela força do que esperam de nós. Neste caso, é fácil de entender porque na ausência da autoridade crianças, jovens e adultos apresentam comportamentos considerados imorais ou não adequados. Investigar e compreender porque a saúde dentária é importante é diferente de escovar os dentes quando a mãe manda.

No diálogo investigativo o exercício da racionalidade se dá entre os envolvidos e não apesar dos envolvidos. O comprometimento dos membros de um grupo com uma situação verdadeiramente problemática implica na necessidade de se admitir os conflitos, avaliá-los e buscar soluções; portanto, de exercitar a autonomia do pensar. Ora, se a moral nos apresenta valores, avaliar os valores, aprender a valorar é fundamental para a investigação ética que tem um espaço promissor no diálogo.

Certa vez fui interrompida por uma educadora que dizia ser impossível falar de ética com seus alunos, pois enquanto ela ensinava que o exercício da violência era errado, os pais afirmavam que os filhos deveriam bater para aprenderem a se defender. Trata-se, novamente, de tentar adequar o quadro à moldura. Mas por que não investigar com as crianças quando é preciso se defender e qual seria a maneira mais adequada de fazê-la? A defesa seria uma forma de violência? O que é violência?

Creio que o exercício da investigação como forma de se pensar os valores nos conduza a terceira dimensão da cidadania que nos apresenta os Parâmetros Curriculares Nacionais . Não há diálogo quando não nos dispomos a considerar os conflitos, quando temos a verdade guardada no bolso para sacá-la no momento conveniente, quando consideramos a razão do outro como ameaça. Desta forma, a formação de uma estrutura igualitária que considere a diversidade como fundamental para a construção coletiva poderia transformar a própria educação em democracia e não simplesmente em promessa de um ideal democrático. Por fim, se o homem é um ser de valores, pensar os valores humanos é a tentativa de nos reconhecer no espelho e mudar a imagem se necessário, ou seja, mais que transformar, ensinar a transformar.

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