Capa do livro “Dom Casmurro”

A própria terminologia que relaciona estes livros a ideia de “clássicos”, acaba em muitos momentos, criando uma barreira ou uma dificuldade para que se apreciem tais leituras. Se é um livro clássico, parece trazer algo distante, com linguagem complicada, com enredo que não irá seduzir os jovens leitores… nada mais errado que, no entanto, como dissemos, exige maturidade dos leitores.

Ler Shakespeare, Cervantes, Camões, Dante, Dostoievsky ou Dickens, somente para exemplificar, exige alguma “milhagem”, para fazermos uma analogia com outra área relacionada a cultura e ao lazer, as viagens…

É preciso introduzir os leitores a estes grandes autores, entre os quais, aqui no Brasil, o nome de maior destaque é certamente Machado de Assis, contando com leituras anteriores, que vão aos poucos introduzindo os jovens aspirantes a tal literatura, tanto no que se refere a uma forma mais sofisticada de narrativa, na qual se emprega um linguajar mais rico, descrições mais detalhadas e requinte na apreciação e apresentação dos diferentes personagens e momentos da trama.

“Dom Casmurro”, por exemplo, obra que figura entre os melhores trabalhos de Machado, frequentemente cobrada em exames vestibulares ou no ENEM, tem sido requisitada como leitura no Ensino Médio nacional há muitos anos sem que os estudantes, de fato, possam sorver e apreciar tal produção.

O romance envolvendo Bentinho e Capitu, retrato de outra era, na qual o romance se estabelecia de forma mais lenta, com maior ingenuidade, sentimentos aflorando a partir do encontro das mãos e um beijo se tornando uma emoção mágica que não podia ser ato aberto, público e sim, algo íntimo, invisível, único e específico dos enamorados.

Numa época como aquela em que vivemos, no distante século XXI (em relação ao tempo da trama machadiana, que ocorre no século XIX), na qual tudo é compartilhado e escancarado via internet nas redes sociais, o amor contido e socialmente delimitado, como aquele que acontece entre um jovem destinado a carreira religiosa, ao seminário, a partir de promessa de sua mãe, que teria que cumprir tal sina para não contrariar os ditames da igreja, poderosa força social e cultural de então, não é facilmente compreendido, como deveria, nem tampouco “curtido”, pelas novas gerações.

Cumprir a sina a ele destinada desde que nascera, de ir para o seminário, a partir de compromisso assumido pela mãe e compartilhado no âmbito familiar, tornando-se, portanto, algo que teria que necessariamente acontecer, fosse ou não o jovem Bentinho vocacionado para ser padre, era algo que não entrava em discussão.

A própria forma como a família estava estruturada, num patriarcalismo que Machado, em virtude da ausência da figura paterna transforma em matriarcalismo, suavizado pela doçura que se esperava das mulheres de então, muito diferentes deste século XXI, em que elas se emancipam cada vez mais e se tornam, felizmente, tão protagonistas quanto os homens, é algo a ser trabalhado não apenas no âmbito da obra, mas de olho na história e na sociologia focadas no século XIX, no qual se desenrola a trama de “Dom Casmurro”.

Que Rio de Janeiro era aquele? Que significava a família em tal contexto? Como eram os romances de então? Qual a força da igreja católica e de seus representantes juntamente as famílias brasileiras? Estas são algumas questões que surgem e que precisam de mais esclarecimento para que o jovem leitor entenda, de fato, “Dom Casmurro” e outras obras de Machado de Assis.

O Brasil era muito diferente. O mundo era outro. Importávamos produtos e hábitos, vivíamos dentro de um modelo europeu, francês, distante daquele que temos hoje, mais americanizado e global, pelo menos entre as elites, num país em que a escravidão era ainda uma das forças motrizes, senão a principal, da economia.

As classes sociais mais abastadas tinham hábitos refinados dentro de uma realidade que não era a europeia, copiava-se de tudo, até as roupas quentes, inadequadas para estes trópicos e para uma cidade litorânea de altas temperaturas como a capital do Brasil de então. Tudo um pouco mais rústico e distante, copiado e não original, mesclado com nossa realidade e práticas locais, que criam algo nosso, ainda que plasmado desta Europa teoricamente ideal que os ricos de então buscavam replicar.

O romance era algo, como dissemos, invisível e impróprio a outros olhares. Qualquer braço a mostra poderia ser considerado algo escandaloso para uma mulher de bem e para um homem casado, cuja esposa se mostrasse demais a vista da sociedade.

As amizades, como aquela que estabelece Bentinho, o personagem principal ao lado de Capitu nesta trama, com Escobar, com quem estudou no seminário, são importantes definidores, atrelados a indicadores sociais e econômicos, divisores da linha clara a indicar quem é quem na história e na sociedade de então.

“Dom Casmurro”, se percebido com os detalhes e minúcias que obra, de tom irônico, realista, com descrição detalhada tanto do entorno quanto dos personagens no seu íntimo, numa narrativa intimista trazida à tona pelo próprio Dom Casmurro, ou seja, por Bentinho, é uma obra que mistura o melhor do romance e que, em sua trama, faz aflorar no leitor tanto uma indescritível vontade de ir, página após página, vivenciando a paixão dos protagonistas quanto, verdadeiramente, se perceber com raiva de Machado pelos caminhos que encerram a obra.

Genial como é, Machado nos desperta sentimentos que pareiam com aqueles do narrador, contraditórios, inflamados em alguns momentos, para o bem e para o mal, numa obra verdadeiramente imortal que, como os melhores vinhos, precisa ser apreciada e não entornada, sendo curtida página após página.

Entender para o vestibular ou provas na escola é apenas consequência, o ideal é que o leitor, preparado, maduro, perceba a grandeza desta obra e a delícia que é ler os livros de Machado.

 

Informações

Pular para o conteúdo